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Gostosa Rotina


Todos os dias, o despertador buzina as 4, hora de desligar o ar condicionado, ele sempre faz isso sem que eu acorde, nunca vejo o despertador fazer barulho algum nesse horário. Ele reprograma o despertador para as 6 pois aí já tenho 15 minutos pra tomar banho, me vestir e andar do ponto 10 até o ponto 12, já que os motoristas dos ônibus sempre desviam da rota, talvez por preguiça ou até mesmo por falta de felicidade no trabalho. Pronto, 6:15 estou pronto, sacudo os cabelos molhados e ajeito-os para que fiquem mais espalhados. Ponto 12, aquele mesmo casal sempre está lá, ele usa um óculos com uma armação prateada, suas lentes devem medir uns 4 a 5 graus, dá aulas em uma escola publica na periferia, sempre desce la, e quando o ônibus demora um pouco no ponto onde ele desce da pra vê-lo cumprimentar o porteiro da escola e entrar para mais um dia de trabalho. Ela desce bem antes, numa escola do bairro nobre, tem os cabelos lisos na altura dos ombros. Na segunda e na quarta ela não toma o ônibus, mas acompanha acompanha seu companheiro até o ponto e espera que ele pegue o ônibus. Isso já foi assim comigo. Dentro do ônibus aqueles dois rapazes com a farda verde já estão sentados, nunca consigo entender o porque de as vezes eles estão sentados um ao lado do outro e outras vezes estão em pólos opostos do ônibus, mesmo que haja assentos vazios ao lado dos dois, sempre há. Um tem feições sérias, que facilmente são destruídas quando esta sentado ao lado do outro, e o outro feições tímidas que nem mesmo sentado com o UM são diferentes. Um pouco antes do próximo ponto, há um farol que nunca está aberto no momento em que o ônibus vai passar por ele, por isso da tempo do próximo passageiro ver o ônibus e correr para o ponto que fica a 15 metros de onde fica sentado. Sempre de camiseta vermelha, com a logomarca da empresa em que trabalha pintada no peito esquerdo, óbvio. Algumas vezes ele já me cumprimentou com um sorriso sutil, bem de leve, acho que com medo de não haver uma resposta ao cumprimento, sendo assim mais fácil mudar a expressão do rosto de disfarçar o fato de que me cumprimentou e não foi respondido. Já deu pra perceber que ele usa aparelhos nos dentes e nesse mês a cor dos elásticos é verde. O ônibus segue e dois pontos depois aquelas duas moças que quase com certeza são empregadas domésticas descem uma seguida da outra, e seguem para as suas lutas. Sempre há alguem novo no pedaço, mas são pessoas que esporádicamente tomam esse ônibus. Certo dia, dormi. E a algum tempo atrás eu sempre descia no ponto próximo à casa dos meus pais, mas como o horário do expediente foi adiantado meia hora para que aos sábados não trabalhássemos, passei a descer mesmo no ponto mais próximo do meu trabalho. Pois bem, quando o ônibus aproximou-se do ponto próximo à casa dos meus pais, um senhor cutucou-me e disse: ja está chegando o ponto em que você desce, acordei você pra que não perca-o. Eu o agradeci, mas disse que não descia mais naquele ponto, assunto encerrado.
Fiquei pensativo sobre isso, pensando em como somos observados todos os dias e não nos damos conta disso. [medo]
Às 7:20 o ônibus aproxima-se do meu ponto. Levanto-me e junto de mim todos os dias um mesmo homem vestido com a farda de uma farmácia também levanta-se e sempre deixo que ele puxe a cordinha da sirene do ônibus. Se eu fosse criança isso não aconteceria, você sabe muito bem disso não é? Uma vez pedi à mamãe que colocasse uma cordinha daquela no carro pra que eu sempre pudesse apertá-la.
Desço do ônibus, atravesso aquela avenida estreita e perigosa e caminho pela calçada observando os carros que vem na direção contrária, observo cuidadosamente para que quando o carro do meu pai se aproxime eu me esconda atrás da parede da farmácia que aquele homem trabalha, não sei se alguém que viu isso entendeu, mas eu sempre me escondo e também não entendo o porque. Quando ele entra na rua da empresa, espero um minuto e também entro. Sempre paro na lanchonete em frente à praça pra comprar um cafezinho de R$ 0,50 e disfarçar meu sono insistente.
Chego no trabalho, papai me olha sempre de bom humor e solta um "BOM DIA!", mamãe não. Sim, trabalho na empresa deles todos os dias até o meio dia, quando vamos pra casa almoçar. Em casa tem a Cruz, que cuida de mim desde os anos 90. Ela é nervosa com tudo, sempre gosto das reações dela ao que falo. Por isso falo muita balela quando a vejo. Em casa também tem o Pedro Afonso que quando ouve o barulho do carro corre pra o primeiro canto escondido e lá fica aguardando que todos os que chegaram vão à sua procura que é curta pois ele sempre esconde-se em lugares óbvios, quando é encontrado solta um "ASSOU!".
Essa rotina repete-se a um ano. Não gosto de rotinas, mas essa é uma rotina gostosa. Sempre me leva pro lugar de onde tiro paz.
Rotinas...

Um comentário:

THAÍS ALENCAR disse...

Uma crônica é uma realidade crua e profunda...
Uma das crônicas mais lindas q já lie foi esta sobre rotina..
Se a rotina for boa..quero então. viver na rotina...